Felicidade
Se eu pudesse congelar o tempo,
escolheria este momento,
exatamente agora,
nesta pouca hora
de uma quarta-feira.
O gerânio novo
enfeitando a prateleira,
o riso de criança
brilhando lá fora.
O livro aberto
no lugar certo,
que simplesmente diz:
“Eu não tenho nada,
mas rouxinóis gorgolejam versos na calçada.”
É assim que se começa a ser feliz.
Flora Figueiredo
FIGUEIREDO, Flora. O
amor a céu aberto. Osasco: Nova Século Editora, 2010.
Cadeira de balanço
Vai chegar o dia
de minha cadeira balançar
vazia;
vai se aquietar o Noturno de Chopin
que toca sempre ao meu lado;
vai se quedar dobrado
o clássico jornal do café da manhã.
Provavelmente hão de permanecer
histórias divertidas,
ensinamentos,
brigas e arrependimentos,
problemas que dividimos,
parcerias que fizemos,
o doce que sempre repartimos,
os amargos que muitas vezes nós comemos.
Devem sobrar nas prateleiras
guirlandas e claves
caídas das cirandas,
que rodaram com a meninice.
Para vocês pode parecer tolice,
mas um dia
elas engrossaram de amor
a minha biografia.
Remendem a meia furada na ponta,
motivo de tanta discussão;
continuem tendo por perto
a lata de aveia
para quando o intestino não der certo;
é bom insistir na sopa de feijão.
Apagar a luz ao sair,
escovar os dentes antes de dormir.
Mas, acima de tudo, nunca dispersar.
Sei que a vida separa e distancia,
mas mantenham-se unidos
seja qual for o lugar
que cada um deva ocupar na geografia.
Nunca contrários,
nem bipartidos.
O destino gosta de rolar suas maldades
sobre sangues divididos,
sobre irmãos adversários.
Tomara que eu tenha sucedido
ao costurar com fio de eternidade
a alça pulsante de cada coração.
Do canto etéreo em que estiver guardada,
vou me alegrar por essa equipe tão amada, mandar a benção feita de plumas e algodão.
FIGUEIREDO, Flora. O amor a céu aberto. Osasco: Nova Século Editora, 2010.
Classificados
Troca-se tudo:
– criado-mudo e seu recheio de cartas superadas,
flores secas, novenas malsucedidas,
receitas para emagrecer;
– colchão gasto do lado direito;
– instrumento que só toca dó maior;
– natureza-morta,
onde frutas se combinam nostálgicas
sobre toalha xadrez;
– campainha que soa apenas quando não se espera
e nunca anuncia quem se quer;
– pilhas de revistas que insinuam
que o mundo já foi melhor;
– livros que é preciso ter,
mas que nunca foram lidos;
– bibelôs que empoeiraram olhando coisa alguma;
– terço incompleto, que perdeu seu Deus final.
Aceita-se em troca
pequena pipa de papel-de-seda,
que voe alto o bastante para enxergar a terra azul,
que seja capaz de romper nuvens,
bolinar sonhos,
driblar tempestades e beber fantasias.
Feito o trato, o proprietário assinará documento,
garantindo o caráter irrevogável da transação.
Esse deve ser emitido em seu próprio nome:
Passado.
FIGUEIREDO, Flora. O amor a céu aberto. Osasco: Nova Século Editora, 2010.
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